Neoextrativismo e o uso de recursos naturais na América Latina: notas introdutórias sobre conflitos e impactos socioambientais

NEOEXTRATIVISMO E O USO DE RECURSOS NATURAIS NA AMÉRICA LATINA: NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE CONFLITOS E IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS

NEO-EXTRACTIVISM AND THE USE OF NATURAL RESOURCES IN LATIN AMERICA: SOME INTRODUCTORY NOTES ON CONFLICTS AND SOCIAL-ENVIRONMENTAL IMPACTS

Claudete de Castro Silva Vitte*




1 Introdução

É desafiadora a discussão sobre conflitos e impactos socioambientais advindos da implantação e modernização da infraestrutura produtiva, mas principalmente daqueles originados pela exploração de recursos naturais e pelo agronegócio. Há debates importantes que perpassam diversos eixos temáticos, com destaque para a questão do desenvolvimento e os múltiplos papéis do Estado-nação no capitalismo.

Este trabalho teve intuito exploratório e preliminar, um primeiro esforço de síntese e análise sobre o tema. É uma versão ampliada e modificada de uma palestra apresentada na Universidade Estadual do Centro-Oeste em Irati (PR), intitulada "Crise socioambiental e a finitude de recursos: uma visão geográfica"1. Nela, foram sumarizadas algumas reflexões recorrentes em projetos de pesquisas da autora sobre integração da infraestrutura produtiva na América do Sul e sobre geopolítica e geoeconomia dos recursos naturais para a produção agropecuária na América do Sul e que apontavam para a existência de diversos conflitos e impactos socioambientais advindos do uso de recursos naturais, da produção agropecuária e implantação de grandes projetos de infraestrutura produtiva na América do Sul.

O objetivo deste trabalho foi demonstrar como a América Latina vem adotando desde a colonização europeia, ainda que com diferentes roupagens, um mesmo modelo de desenvolvimento, baseado na exploração de recursos naturais, com um legado de devastação ambiental, agravado pelo recente avanço na exploração de recursos minerais, petrolíferos e de monoculturas de exportação, ocasionado por maior demanda internacional, desencadeando profundos impactos ambientais e territoriais, com a manutenção de um padrão (neo)extrativista, conforme definido por Eduardo Gudynas (2012).

Os principais procedimentos metodológicos desta pesquisa de caráter exploratório envolveram, fundamentalmente, levantamento e revisão teórico-bibliográficos e histórico-analíticos acerca do tema, pauta da agenda de pesquisa da geografia das relações internacionais, com o exame de materiais de natureza diversa, entre os quais se buscaram interpretações novas ou complementares, constituindo-se em uma pesquisa de revisão, com adoção de dados e informações de fontes secundárias.

Como resultados, espera-se ter contribuído com uma abordagem transescalar na interpretação do processo do desenvolvimento do capitalismo em sua dimensão territorial na América Latina na contemporaneidade, por meio da discussão sobre impactos e conflitos socioambientais advindos do uso de recursos naturais, da produção agropecuária e da implantação da infraestrutura produtiva na América Latina e também pelo aprofundamento da discussão da espacialidade da vida política centrada na relação entre espaço e poder, considerando algumas contribuições de pesquisas sobre o tema.

Este artigo está dividido em seis partes. Na primeira parte faz-se uma reflexão sobre a expansão das formas capitalistas de produção e suas consequências em termos de progresso técnico, acumulação de riquezas e desenvolvimento institucional na América Latina nos dois últimos séculos. A segunda parte versa sobre a herança histórica do padrão agroexportador de base extrativista no subcontinente. Na terceira parte faz-se uma caracterização dos recursos naturais disponíveis na América Latina. Na quarta parte analisa-se a relação do neoextrativismo com a acumulação por espoliação, fundamentado em David Harvey, e a necessidade de tratamento securitizado dos recursos naturais, em consonância com a atual agenda de estudos de segurança internacional. A quinta seção é central no artigo; nela discutem-se conflitos e impactos socioambientais no subcontinente advindos da extração de recursos naturais, da produção de commodities e de megaprojetos de infraestrutura produtiva, e, por fim, antecedendo as considerações finais, na sexta parte aventam-se alguns elementos normativos na busca de alternativas para o uso de recursos naturais na América Latina, em consonância com a ideia de justiça social e de uma ordem internacional ambiental.

2 A expansão capitalista e modelos de desenvolvimento na América Latina no século XX e XXI: mais do mesmo?

No âmbito da Geografia, faz-se necessária uma visão escalar nas análises. A escala do Estado-Nação é a referência, por suas conexões com a escala global (ou a do sistema-mundo), com a escala latino-americana e com escalas intranacionais, como as escalas regionais e local (TAYLOR, 2002).

A expansão do capitalismo no Pós-2ªGM levou ao aumento do uso dos recursos naturais e à produção excessiva de dejetos, gerando a necessidade de repensar crescimento econômico ilimitado, bem como o desperdício e o desnível do padrão de consumo entre ricos e pobres, tanto países quanto indivíduos.

Importantes marcos do debate ambiental internacional foram o Clube de Roma e a Conferência de Estocolmo ocorridos na década de 1970, sucedidos por outras Conferências patrocinadas pela Organização das Nações Unidas. Assim, segundo Everton Vieira Vargas (2004),

o estabelecimento de regimes internacionais na área ambiental, ao abrigo dos organismos internacionais, especialmente das Nações Unidas, leva não raro à expectativa equivocada de que instituições internacionais teriam capacidade política e recursos econômicos para determinar políticas públicas a serem seguidas pelos Estados. Nada é mais distante da realidade. O apoio ao multilateralismo e ao engajamento da ONU e de suas agências especializadas na solução de problemas ambientais regionais ou globais tem por fundamento a noção de que a atuação dos organismos internacionais é condicionada pelos limites definidos para seus mandatos pelos Estados que integram os diferentes regimes. A conformação desses mandatos reflete a distribuição de poder entre seus membros com repercussões importantes para a implementação e eficácia dos regimes internacionais.

Lamentavelmente, essas organizações multilaterais não têm conseguido reagir às mudanças internacionais recentes, persistindo a preponderância da política econômica acima de outras, cenário propício para a emergência de ONGs e outros atores da sociedade civil organizada no debate das relações internacionais (BARROS-PLATIAU et alii, 2004).

As transformações provocadas pela globalização da economia fizeram emergir uma sociedade de riscos que chama a atenção. Esses riscos estão distribuídos desigualmente no mundo, mas, por outro lado, agem indistintamente em todos os quadrantes do globo, desafiando os rumos do atual modelo de desenvolvimento.

Estava em xeque uma ideia de desenvolvimento que sempre esteve associada à expansão das formas capitalistas de produção e suas consequências em termos de progresso técnico, acumulação de riquezas e desenvolvimento institucional (FLEURY, 2006).

Considerando as especificidades da América Latina, nesse subcontinente, após séculos de predomínio de economias agrário-exportadoras, entre as décadas de 1940 e 1970, muitos países, como o Brasil, modernizaram-se.

A ideia de modernização da sociedade era vista por parte das elites econômicas e políticas como sinônimo de industrialização, ou seja, modernizar era entendido como sinônimo de se industrializar a economia, mediante o discurso de rompimento com um passado tradicional, agrário, escravista e patrimonialista. Caberia ao Estado nacional ser o instrumento dessa modernização, planejando o desenvolvimento econômico, bem como o território e implantando a infraestrutura produtiva e social.

A visão hegemônica de desenvolvimento era sinônimo de crescimento, de expansão das forças produtivas, de modernização e de industrialização, com a priorização do crescimento econômico regional e nacional, enquanto que as dimensões social, ambiental e demandas de alguns setores e grupos localmente afetados pelas ações estatais muitas vezes não eram consideradas.

Como resultados, após décadas de atuação, em âmbito econômico, por indicadores convencionais, eles foram exitosos. Quanto aos resultados sociais, eles foram dramáticos e contrastantes. Dessa forma, a modernização da sociedade brasileira e latino-americana podem ser consideradas incompletas e dissociadas da noção de cidadania.

No final dos anos 1970 havia sinais claros do esgotamento do modelo, abrindo-se espaço para o neoliberalismo, que predominou no Brasil e América Latina até o início do século XXI, com a chamada "onda rosa" (de governos de centro-esquerda) e que, recentemente, vem cedendo espaço para um possível ciclo político conservador e liberal.

De fato, nos anos 1990, conforme assinalam Alba Maria Pinho de Carvalho, Bruno Milanez e Eliana Costa Guerra (2018), em estudo de caso sobre o Brasil, mas extensivo ao demais países da região, houve

uma série de ações que inviabilizaram a continuação do modelo desenvolvimentista. Destacam-se, entre elas: o processo de rápida redução do tamanho do Estado, a entrada de transnacionais, a abertura comercial e a privatização de empresas públicas [típicas medidas neoliberais]. Dessa forma, o foco no mercado interno foi reduzido e retomou-se a preocupação com o "crescimento para fora". Assim, a exportação voltou a ser vista como "nova" estratégia de desenvolvimento (BARTON, 2006). Este processo de inserção internacional, a reforçar as vantagens comparativas, foi marcado pela baixa competitividade dos produtos industrializados fabricados na região, o que levou o Brasil, assim como outros países da América Latina, a, novamente, se apoiar na exportação de recursos naturais (SCHAPER; VÉRÈZ, 2001), na condição de commodities, no âmbito do modelo de acumulação por espoliação (HARVEY, 2004).

Dessa forma, no século XXI países da América Latina vêm adotando um modelo de desenvolvimento econômico calcado na extração de enormes volumes de recursos naturais, utilizados de maneira intensiva e com foco em exportações. Nesse novo modelo está incluída a agropecuária (monocultora)2, a mineração e extração de recursos energéticos, em uma releitura do histórico extrativismo latino-americano (GUDYNAS, 2012), mas também por meio de megaprojetos de infraestrutura que visam a ampliar e a viabilizar esse modelo econômico e que também provocam diversos conflitos e impactos socioambientais.

3 A herança histórica do padrão agroexportador de base extrativista na América Latina

Primeiramente, é importante observar que a formação territorial da América Latina, desde o século XVI, teve como marco a exploração de recursos naturais, com um legado de devastação ambiental gerada pelos colonizadores europeus.

Posteriormente, no século XVIII e XIX, a formação territorial da América Latina passou a ser permeada pelo fechamento territorial e a formação dos Estados Nacionais. No entanto havia descontinuidades, com áreas que poderiam ser ocupadas futuramente, os chamados fundos territoriais, segundo Antônio Carlos Robert Moraes (2000), como a Amazônia bem exemplifica. Já no século XXI, a América Latina passou novamente por um processo de abertura territorial, conforme ilustra a IIRSA (Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana), criada em 2000.

Cabe recordar que, historicamente, países da América do Sul, como o Brasil, tiveram grandes projetos de desenvolvimento calcados na ampliação da fronteira agrícola, tanto de cunho governamental quanto projetos privados ou apoiados por cooperação estrangeira, com impactos econômicos e sociais no território e no mercado de terras, cuja herança ainda persiste no subcontinente.

Desse modo, ao longo dos séculos, o padrão geopolítico de exploração dos recursos naturais na América do Sul tem sido uma força profunda que se intensifica ao longo do tempo por meio do progresso técnico, repercutindo na fluidez dos processos dinâmicos de territorialização e reterritorialização (SENHORAS; MOREIRA; VITTE, 2009).

A propósito, cabe esclarecer o que são recursos naturais. Segundo Moraes (2000), os "materiais e fenômenos da natureza só se qualificam como recursos naturais para uma sociedade quando essa dispõe de conhecimentos e técnicas para manipulá-los, atribuindo uma utilidade à vida humana", passam a "ser valores de uso potenciais, constituindo parte da riqueza natural disponível no patrimônio do grupo social que os detém" (MORAES, 2000, p. 36, grifo do autor).

E um recurso natural se torna estratégico quando ele passa a ser escasso e potencialmente vital para o desenvolvimento de certas atividades econômicas (SENHORAS; MOREIRA; VITTE, 2009), como, por exemplo, os elementos químicos terras raras.

Há, assim, uma geopolítica dos recursos naturais, um componente conflitivo advindo da assimetria natural de sua dotação, quando em alguns territórios há certa abundância e em outros lugares há escassez (SENHORAS; MOREIRA; VITTE, 2009).

4 Recursos naturais disponíveis e potenciais da América Latina

A América Latina é autossuficiente e exportadora de uma ampla gama de produtos advindos de seus recursos naturais e da agropecuária, com a produção diversificada de matérias-primas. Essa pujança de recursos naturais é tributária de um subcontinente que possui uma grande variedade e disponibilidade de solos, de tipos climáticos, de áreas agricultáveis, de formações geológicas, de biodiversidade e recursos hídricos. Tal potencial coloca a América Latina (e sua parte Sul) como uma das principais abastecedoras do mercado mundial de commodities (ANTUNES, 2007). Porém esse rico potencial não se distribui igualmente entre os países da América Latina, havendo a necessidade de significativa complementação econômica entre esses países.

Resumidamente, a América Latina e Caribe (ALC) possuem 8% da população mundial (658 milhões de habitantes em 2019), um grande mercado consumidor potencial; 23% das terras potencialmente cultiváveis do mundo, sendo que, na atualidade, detêm 12% das terras cultivadas no planeta; têm 46% das florestas tropicais; e possuem 31% da água doce do planeta (FAO, 2016).

É uma região possuidora de vastos recursos hídricos, que abriga algumas das bacias hidrográficas mais importantes do mundo, como a do Amazonas, Orinoco e do Prata, somadas a outras mais de 50 bacias hidrográficas e diversos aquíferos, alguns compartilhados por dois ou mais países, caso do conhecido Aquífero Guarani, maior manancial subterrâneo transfronteiriço do mundo. Nesse contexto regional, o Brasil possui a maior disponibilidade hídrica do planeta, ou seja, 13,8% do deflúvio médio mundial (CEPAL/UNASUL, 2013).

Contudo a distribuição da água na região é altamente desigual em termos geográficos, inclusive com áreas desérticas ou semidesérticas, resultando em sérios desafios relacionados à gestão da água e também a um tipo de uso pouco discutido, o da água virtual (CASTRO, 2012).

Água virtual, tão exportada pelos países da América Latina junto com seus produtos de base extrativa e de commodities, pode ser entendida como o volume de água demandado para a produção de determinada commodity, como um valor adicionado que não é contabilizado e que tem forte impacto na sustentabilidade ambiental em médio e em longo prazo, e como a água é parte indissociável da produção de muitas commodities, há um comércio internacional indireto que explora a abundância desse recurso3.

Na questão da produção de energia hidroelétrica, a região também se sobressai, com destaque para o Brasil, onde mais de 70% da capacidade instalada provém de fonte hidráulica. Cabe frisar que há certa crença de que esse tipo de geração de energia encaminha ao "desenvolvimento sustentável", o que se coloca como algo que necessita ser mais bem discutido4. Contudo, como alertam Andréa Zhouri e Raquel Oliveira (2007), com centenas de projetos de construção de usinas no Brasil e no subcontinente, a situação é preocupante, pois, na realidade, muitas barragens já inundaram milhões de hectares de terras produtivas e desalojaram centenas de milhares de pessoas, revertendo-se em um quadro de "intensificação do uso de áreas economicamente marginais e a expansão da fronteira econômica do mercado sob territórios historicamente ocupados por agricultores familiares e minorias étnicas" (ZHOURI; OLIVEIRA, 2007, p. 121).

Um destaque a ser mencionado é o fato de a América Latina (América do Sul) ser uma das regiões mais ricas nos recursos fundamentais para a produção de alimentos – terra e água. Especialmente o chamado Cone Sul da América é considerado como um dos "celeiros" do mundo.

A FAO estima também que a América Latina tem 800 milhões de hectares de terras, ainda que na sua maior parte coberta por florestas, sendo o desmatamento uma preocupação, pois ele pode iniciar a degradação do solo, com efeitos perversos para os ecossistemas. A transformação de ecossistemas naturais em terras agrícolas é de cerca de 30% na América Latina, o que corresponde a mais de 600 milhões de hectares de agroecossistemas, que apresentam, no entanto, processos de degradação que têm na pressão humana e nas mudanças climáticas os seus principais fatores (FAO, 2016).

Assim, a disponibilidade de recursos naturais na América Latina, especialmente em sua parte Sul, no que se refere a terra e à água para a produção agropecuária é extremamente positiva. Como o contexto mundial é de crescente escassez, as pressões sobre esses recursos são cada vez mais evidentes. Sob perspectiva política, há o dilema de como utilizar esses recursos: aproveitar a oportunidade de crescente demanda internacional e explorá-los para melhorar as contas nacionais ou fazer um uso estratégico, tratando esses recursos de maneira securitizada? Esse dilema é explícito na América Latina e é um ponto crucial na discussão sobre geopolítica dos recursos naturais porque, como bem lembra Bernardo Mançano Fernandes (2009), o sentido e o significado do conceito de soberania alimentar estão, cada vez mais, associados à soberania dos povos, de forma que a questão agrária não é somente um problema de renda da terra; é uma questão geopolítica, de forma que

a questão agrária é, antes de outras implicações, um problema territorial. O agronegócio e a agricultura camponesa disputam territórios em quase todo o mundo. A produção de agroenergia intensificou esta disputa e criou problemas de abastecimento de alimentos. A procura de novos territórios para a expansão da agricultura tem hoje uma nova característica. Empresas e governos de diversos países estão arrendando, comprando, dando em arrendamento gigantescas áreas de terras.

A despeito de também conter importantes recursos naturais como petróleo e gás, as produções nacionais na América Latina parecem conter uma maldição da abundância (a chamada doença holandesa), fenômeno recorrente ao longo de cinco séculos no subcontinente. Primeiramente, no século XX, o potencial petroleiro se confirmou apenas com a produção da Venezuela. Contudo, após o chamado Segundo Choque do Petróleo (1979), ocorreu um crescimento da produção, do consumo e das reservas de petróleo na América Latina e Caribe.

Um franco crescimento das reservas de hidrocarbonetos ocorreu no início do século XXI com a descoberta e incorporação de reservas não convencionais, tais como o petróleo pesado da Venezuela, o petróleo ultraprofundo no Brasil e o de folhelho (petróleo de xisto) na Argentina, resultando em cerca de um quinto das reservas provadas mundiais no subcontinente (DUTRA, 2013). Dessa forma, há um potencial de exploração que vem despertando interesse de empresas estrangeiras porque outras áreas produtoras tradicionais ao redor do mundo apresentam produção em queda.

5 Neoextrativismo na América Latina: Acumulação por espoliação ou Securitização?

Apesar de não ser mais uma região de economia exclusivamente agrícola, o modelo econômico atual reproduz um padrão histórico da América Latina que continua concentrado na exploração dos recursos naturais, com produção crescente de commodities, visando a exportações, em comparação com produtos manufaturados (PORTO apud BBC, 2014).

O recente avanço da exploração de recursos minerais, petrolíferos e as monoculturas de exportação desencadeiam profundos impactos ambientais e territoriais, mantendo-se um padrão (neo)extrativista (GUDYNAS, 2012), no qual há a extração de enormes recursos naturais direcionados à exportação, como matéria-prima, sem grandes processamentos, e subordinados aos mercados globais, por meio de corporações multinacionais.

Eduardo Gudynas (2012) denominou o atual modelo de neoextrativista porque, na sua compreensão, o padrão do passado foi rejuvenescido pelos governos progressistas em gestões mais recentes5, os governos da chamada onda rosa, críticos do neoliberalismo, que desempenharam papéis mais ativos com a implantação de políticas sociais importantes, com destaque em programas de luta contra a pobreza, mas sem mudanças estruturais nas atividades econômicas, dando continuidade aos modelos de grande impacto social e ambiental que, novamente, acabam remetendo à dependência dos circuitos econômicos globais (GUDYNAS, 2012). Esse autor argumenta que

nos governos progressistas [especialmente os sul-americanos], o debate sobre os impactos sociais, ambientais e territoriais fica mais opaco. No que se refere à dimensão ambiental, sua existência é negada ou minimizada em várias ocasiões, sendo rechaçada em outros, sendo esta apresentada como disputa de interesses econômicos, conflitos sobre o ordenamento territorial, ou expressão de obscuras agendas político-partidárias6 (GUDYNAS, 2012).

Cabe observar alguns aspectos que envolvem o modelo de produção neoextrativista. Um primeiro deles é o que há de específico na atual fase neoextrativista. Segundo Eduardo Gudynas (2012, p. 309),

no velho extrativismo, brigava-se pela propriedade dos recursos. Os governos anteriores outorgavam títulos de propriedade ou criavam normas de cessão e acesso a recursos minerais ou petrolíferos, algo que na prática se assimilava muito a ceder a propriedade destes recursos. Essa tendência acarretou uma forte transnacionalização dos setores extrativistas e um papel cada vez menor das empresas estatais. No neoextrativismo, [...] o protagonismo estatal é maior, o que faz com que os controles sobre o acesso aos recursos sejam redobrados; em quase todos os casos, afirma-se que estes recursos são propriedade do Estado. Ao mesmo tempo, foram ressuscitadas ou criadas empresas estatais (por exemplo, o fortalecimento da YPFB na Bolívia ou a criação de uma empresa estatal para o gás e a energia, a Enarsa, na Argentina). Essa presença é mais variada, incluindo empresas estatais, cooperativas mistas ou privadas. Mas, apesar desta situação, tanto os Estados quanto as empresas estatais visam o êxito comercial e, portanto, replicam as estratégias empresariais baseadas na competitividade, na redução de custos e no aumento da rentabilidade.

Sendo assim, deve ser evidenciado que tem havido transnacionalização dos setores extrativistas, ainda que haja a presença de capitais nacionais, como aponta Eduardo Gudynas (2012), na citação acima, com certo protagonismo de empresas estatais. Ressalte-se sua observação de que tanto as empresas estatais quanto as privadas visam ao êxito comercial, pois são empresas capitalistas, e, independente de quem controla o negócio, as consequências socioambientais advêm de ambos os tipos de empresas. Entretanto é esperado que parte do lucro gerado por empresas estatais retorne ao erário público para uso social, justificando seu papel.

Outro aspecto importante, associado ao comentado acima, é que tem se verificado uma ofensiva do capital privado sobre os recursos naturais da América Latina e Caribe. Há forte demanda por privatizações, que geram disputas e conflitos entre diferentes atores, nos moldes da discussão sobre acumulação por desposessão feita por David Harvey (2004)7.

Nesse contexto, com o reconhecimento das potencialidades naturais da América Latina, ganha reforço no debate político o discurso favorável à securitização de recursos naturais, da necessidade de controle e de planejamento para uso estratégico dos estoques desses recursos naturais.

A securitização dos recursos naturais se vincula com os problemas ou as ameaças visíveis ou potenciais em torno de sua oferta, com disputas pelo acesso e controle, sendo que são recursos que podem se esgotar ou que a extração ou uso indiscriminado podem alterar as condições sociopolíticas locais, sendo um tópico da pauta de segurança.

A securitização ou politização do tema do uso de recursos naturais coloca em evidência a necessidade de se criar regulações ambientais e de busca de alternativas para coibir a cobiça de agentes externos. Gian Carlo Delgado Ramos (2012, p. 4-5), ao discutir extrativismo e geopolítica dos recursos naturais, afirma que

las nociones de geopolitización o seguritización de los recursos se vinculan con los problemas o amenazas visibles o potenciales en torno a su abastecimiento, yendo desde cuestiones asociadas a la erosión de las reservas de fácil acceso, alas condiciones sociopolíticas locales, a las regulaciones ambientales, el avance de frentes tecnológicos [...], el auge de probables nacionalismos e incluso al incremento de eventos climáticos extremos con potencial de interrumpir el flujo de recursos hacia el mercado mundial. [...] La disputa, que incluye lo económico, lo diplomático y la fuerza o la amenaza del uso de ésta, no nada más se perfila como algo problemático en la dimensión de las relaciones internacionales, dígase entre los Estados nación, también lo es a nivel del control de los propios territorios y su gente por parte de ... [las empresas] y los grupos de poder local que la avalan y para la cual establecen una diversidad de condiciones ventajosas. [De forma que] el debate sobre la securitización de los recursos naturales, con toda la amplitud de aspectos que vincula, se coloca, por tanto, como un asunto de trascendencia que se mantendrá en la agenda latinoamericana, tanto de parte de las elites de poder extranjeras y sus sócios regionales, como de los proyectos alternativos de nación, pero también de los pueblos.

Dessa forma, outro aspecto do modelo neoextrativista é o papel do Estado, já que ele não consegue se fazer presente de forma adequada e homogênea em todo o território, tendo ação limitada na proteção dos direitos dos cidadãos e na prestação de serviços públicos, falhando no desenvolvimento social, sendo, contudo, um ator muito ativo na promoção e defesa de enclaves extrativistas, como aponta Eduardo Gudynas (2012).

Também é fato que a agropecuária de exportação e os plantios florestais também constituem uma espécie de megaprojeto, com impactos diversos similares a de grandes obras de infraestrutura, quer pela dimensão quer pela velocidade de expansão, o que tem impactos em nível territorial, mas também eles também são um extrativismo agrícola (GUDYNAS, 2012).

E um último aspecto a ser ressaltado é que uma maior exploração dos recursos naturais exige redes técnicas (transportes, energia, comunicações), que ao serem implantadas desencadeiam outros efeitos socioambientais negativos, sendo outra fonte de conflitos, como discutido em diversos trabalhos (VITTE, 2006; 2017; 2020).

6 Conflitos e impactos socioambientais no Brasil e na América Latina

Na América Latina, o recente avanço da exploração de recursos naturais, a exemplo dos minerais, dos hidrocarbonetos, das monoculturas de exportação, por exemplo, além da execução de megaprojetos de infraestrutura, muitas vezes com vistas a atender à mineração, ao agronegócio e a alguns extrativismos para exportação, desencadeiam profundos impactos ambientais e territoriais, refletindo o modelo de desenvolvimento adotado pelos governos nacionais.

Têm ocorrido diversos problemas socioambientais, ressaltando-se a destruição das florestas nativas com o desmatamento e os consequentes impactos na biodiversidade, nos mananciais, rios e em diversas comunidades tradicionais. Andréa Zhouri e Klemens Laschefski (2014) fizeram um esforço de definição e de caracterização dos conflitos socioambientais, reconhecendo múltiplos projetos de sociedade em confronto. Eles mostram que

os conflitos ambientais surgem das distintas práticas de apropriação técnica, social e cultural do mundo material e que a base cognitiva para os discursos e as ações dos sujeitos neles envolvidos configura-se de acordo com suas visões sobre a utilização do espaço. Os conflitos se materializam quando essas concepções de espaço são transferidas para o espaço vivido [...] esses conflitos ambientais denunciam contradições nas quais as vítimas não só são excluídas do chamado desenvolvimento, como também assumem todo o ônus dele resultante. Ou seja, eles evidenciam situações de injustiça ambiental, que é a condição de existência coletiva própria a sociedades desiguais onde operam mecanismos sociopolíticos que destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa renda, segmentos raciais discriminados, parcelas marginalizadas e mais vulneráveis da cidadania (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2014).

Uma importante contribuição de Zhouri e Laschefski (2014) é a proposição de uma tipologia de conflitos, para viabilizar que se reconheça a "profundidade do enfrentamento entre os grupos envolvidos e as possibilidades reais da sua conciliação ou solução", sempre importantes em situações conflituosas. Identificam três modalidades de conflitos ambientais: a) os distributivos, derivados das desigualdades sociais no acesso e na utilização dos recursos naturais; b) os espaciais, engendrados pelos efeitos ou impactos ambientais que ultrapassam os limites entre os territórios de diversos agentes ou grupos sociais; e c) os territoriais, relacionados à apropriação capitalista da base territorial de grupos sociais (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2014). Seguem algumas observações dos autores sobre o terceiro tipo, o que mais interessa a este trabalho, ainda que, na prática, eles possam ocorrer em simultaneidade. Na concepção dos autores,

os conflitos ambientais territoriais marcam situações em que existe sobreposição de reivindicações de diversos grupos sociais, portadores de identidades e lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial (p.e. área para a implementação de uma hidrelétrica versus territorialidades da população afetada). Nesse sentido, os grupos envolvidos apresentam modos distintos de produção dos seus territórios, o que se reflete nas variadas formas de apropriação daquilo que chamamos de natureza naqueles recortes espaciais. [...] Os conflitos ambientais territoriais surgem, então, quando este sistema de apropriação do espaço, com suas consequências sociais e ambientais, se choca com os territórios gerados por grupos cujas formas de uso dependem, em alto grau, dos ritmos de regeneração natural do meio utilizado. [...] O deslocamento ou a remoção desses grupos significa, frequentemente, não apenas a perda da terra, mas uma verdadeira desterritorialização, pois muitas vezes a nova localização, com condições físicas diferentes, não permite a retomada dos modos de vida nos locais de origem, sem contar o desmoronamento da memória e da identidade centradas nos lugares (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2014).

Um dos setores mais polêmicos, típico gerador de conflitos ambientais territoriais, é o da mineração, um dos mais ativos da economia reprimarizada dos países latino-americanos. As empresas desse setor geram diversos problemas, inclusive em áreas distantes dos locais de extração, tais como assinalados por Carvalho, Milanez e Guerra (2018), que acusam essas empresas de promoverem

o "extrativismo predatório", nos mesmos moldes dos idos tempos coloniais, praticando extração intensiva e em longa escala, localizada em enclaves, controlado por empresas transnacionais, com o apoio dos governos nacionais, em um processo de subalternização de Estados nacionais, num processo designado neocolonialista (MISOCZKY; BÖHM, 2013). Assim, na América Latina, desenvolvem-se novas formas de [...] organização reprodutiva que reordenam, sob novas condições, os velhos sinais da dependência e do subdesenvolvimento que tendem a andar na contramão das necessidades da maioria da população (2013, p. 313), que, indispensável dizer, resultam em sérios impactos sociais e ambientais. Mesmo as áreas urbanas podem ser impactadas negativamente. De fato, grandes projetos extrativistas, particularmente ligados à mineração ou à infraestrutura logística, implantada para garantir a exportação dos recursos extraídos, podem levar a ondas migratórias que ocasionam inchaço urbano, favelização, aumento da violência, prostituição e sobredemanda dos serviços públicos de saúde, saneamento e segurança, que não são devidamente assegurados pelo Estado, agravando, assim, a questão social, no âmbito da crise urbana. Nesse sentido, as comunidades locais tendem a arcar com a maioria dos impactos negativos, enquanto grande parte dos benefícios é concentrada pelas empresas ou pelos governos nacionais (DAVIS; TILTON, 2005).

Transtornos humanos e ecológicos provocados por exploração de recursos naturais, pela agropecuária e pelos megaprojetos de infraestrutura têm gerado movimentos sociais de oposição ao modelo neoextrativista, havendo questionamentos sobre a sua viabilidade social e econômica quando se observam os impactos socioambientais. São movimentos sociais que apresentam um forte componente sociocultural ao defender o território, as formas de vida, a cultura e a história dos povos, sendo importante fonte de conflitos socioambientais (GOMEZ; LATTA, 2014).

São os povos das chamadas comunidades tradicionais que sofrem contínua expropriação, exploração e ameaças sobre suas terras, sobre os recursos nelas existentes, sobre suas vidas, entre eles os indígenas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, babaçueiros, pantaneiros, caiçaras, jangadeiros, pescadores artesanais, sertanejos, camponeses, entre outros. São chamados de tradicionais, porque todas as transformações e modernização não foram suficientes para mudá-los no que diz respeito às suas culturas e à sua relação com a natureza (FERNANDES; WELCH; GONÇALVES, 2012). Como explica Jean Pierre Leroy (2011),

há diferenças muito grandes entre esses grupos sociais. Destaco aqui primeiramente as comunidades tradicionais, que vivem do extrativismo ou de uma combinação de extrativismo e de produção agrícola. Através da construção social de seu território, homens, mulheres e jovens, cada um ao seu modo, criam ou reforçam as suas identidades coletivas de quilombolas, de pescadores, de extrativistas, condição necessária para conquistar o direito a um território e mantê-lo. Algumas características da gestão desses territórios se destacam. Em geral, essas comunidades estipulam restrições ao uso da terra, visando à conservação do sistema florestal e/ou aquático; elas mantêm a noção de território coletivo, para garantir sua continuidade; elas supõem organizações comunitárias legítimas e ativas e implicam a participação das famílias e comunidades locais na sua gestão, o que faz com que as regras consuetudinárias sejam mantidas, mesmo que eventualmente necessitem de adaptações. Simplificando, podemos caracterizar os territórios tradicionais não somente por seus limites, mas também pelo controle e pela gestão dos seus recursos naturais.

Destarte, nas últimas décadas, em vários países da América Latina vêm ocorrendo uma aceleração da destruição da agricultura camponesa e a concomitante ampliação de monoculturas ligadas ao agronegócio de exportação. Além da concentração de terras que este modelo agroindustrial impõe, também há a destruição de florestas nativas, com as consequentes destruições da biodiversidade, mananciais, rios e desmantelamento de comunidades tradicionais, em um processo vinculado ao avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais (SIMONETTI, 2012).

Nesse contexto, muitos camponeses fragilizados e pressionados pelo capital agroindustrial vêm se mobilizando e, por meio de ação coletiva, buscam lutar de forma organizada por seus direitos. Fruto dessa mobilização foi a criação da Via Campesina em 1992, uma rede transnacional de movimentos sociais que sofre influências mútuas entre as esferas local e global (SIMONETTI, 2012).

No que se refere a megaprojetos (mas também a megaobras) de infraestrutura, tais como hidrelétricas, rodovias, ferrovias, entre outros, Alexandra Martins Silva (2017) traz alguns aspectos importantes para a reflexão. Primeiramente, ela nota que, sob diferentes realidades sociais, políticas e econômicas, os megaprojetos revelam características e lógicas comuns de concepção e construção em diferentes contextos territoriais, e o conflito de interesses sempre se encontra presente.

Um dos principais elementos sobre megaprojetos refere-se às relações de poder que envolvem a dominação da natureza, mas também de alguns simbolismos geopolíticos, de força e soberania dos países, daí algumas vezes poder adjetivá-los como "obras faraônicas", até porque megaprojetos são uma constante na História.

Porém, no que tange ao capitalismo, os megaprojetos envolvem o que Silva (2017) chamou de novas tiranias, pois, além de subestimação de custos e superestimação dos benefícios, há também a subestimação de impactos socioambientais que, muitas vezes, não são considerados ou são mal calculados na fase de projeto e de execução, e que, certamente, trarão consequências para as populações locais e para o ambiente8. A autora, baseada em literatura sobre o tema, advoga que

especialmente nos países do Sul, a edificação destas grandes obras consolidou o processo de apropriação dos recursos naturais e produziu uma espécie de epistemicídio (SANTOS; MENESES, 2010), ou seja, a destruição de formas de saber, e a inferiorização de outras, entre outros processos de aniquilação cultural das populações indígenas e demais povos tradicionais. No presente, observa-se que o padrão vigente de edificação de megaprojetos tem proporcionado, de modo recorrente, as mais variadas violações de direitos humanos (SILVA, 2017).

Dessa forma, diversos questionamentos aos megaprojetos têm ocorrido na América Latina, sendo emblemático o caso da Hidrelétrica de Belo Monte, na Amazônia brasileira.

Principalmente as hidrelétricas têm sido pautadas por inúmeros conflitos e têm sido alvos de denúncias por movimentos sociais, grupos indígenas e outras populações afetadas, não apenas pelos impactos provocados, mas também pela falta de participação popular nos processos decisórios, de forma que, como assinala Silva (2017), parece que a falta de informação e de diálogo faz parte da estratégia de projeto e execução dessas megaobras, e as populações afetadas são encaradas como entraves. A autora reforça seus argumentos afirmando que

no que corresponde aos megaprojetos, as transformações do território e a apropriação deste têm gerado controvérsias e representam uma arena de conflitos, onde diferentes interesses estão presentes e os recursos de poder são extremamente desiguais. O embate constitui o elemento central neste processo, em que, amiúde, as decisões centralizadoras contribuem para que os processos sejam altamente conflituosos. No que diz respeito a este conflito de interesses, pode-se ressaltar os grupos políticos, os grupos empresariais e as grandes construtoras. O papel destas empresas é central para se entender o alcance de todo este processo (SILVA, 2017)9.

Assim, megaprojetos também são obras cujas decisões são sempre centralizadas, o que contribui para a conflitualidade dos processos. Muitas vezes quando a população potencialmente afetada é chamada para participar, as decisões já estão tomadas e já se tornaram irreversíveis. Assim, os papéis de planejar, analisar, avaliar, decidir e implementar o megaprojeto cabem a governos e empresas, que apresentam as decisões como resultado de uso de técnicas e da racionalidade, em contraponto com as argumentações da população envolvida (SILVA, 2017).

Outra fonte de conflitos socioambientais advém do relevante papel das atividades agropecuárias nas economias dos países latino-americanos, com diversas implicações. Sobre o exposto, Anahí Gomez e Alex Latta (2014) asseveram que

a agricultura de exportação e os plantios florestais10 também constituem uma espécie de megaprojeto, dado que sua expansão tem impactos em nível territorial. Na dimensão hídrica, provocam mudanças profundas nos ciclos hidrológicos e geram escassez de água. Dessa maneira, ameaçam a sobrevivência de pequenos produtores e fomentam processos de emigração. [...] Os transtornos humanos e ecológicos provocados pelos megaprojetos têm gerado na América Latina, há vários anos, movimentos sociais de oposição, a partir dos quais se tem questionado o modelo de desenvolvimento e sua viabilidade social e econômica.

O uso crescente dos territórios para expansão do agronegócio também tem levado a uma acelerada destruição da agricultura camponesa e à concomitante ampliação de monoculturas ligadas à exportação, o que muitas vezes provoca desmatamento e perda de biodiversidade, além de problemas sociais no campo e diminuição da produção familiar para a segurança alimentar. Saliente-se também que há uma estrangeirização da propriedade da terra em muitos países, com imprevisíveis consequências geopolíticas, um "ninho de ovos de serpente" para soberanias nacionais, que no futuro podem levar à contestação territorial, cenário que não é infundado.

Outra série de conflitos socioambientais está associada à construção ou modernização de obras de infraestrutura e geração de energia, tais como a construção de estradas, ferrovias, oleodutos, complexos portuários, hidroelétricas e termelétricas, fazendas de energia eólica, muitas vezes tendo em vista a exploração de recursos naturais e o agronegócio.

Sob outra perspectiva, é evidente que o consumismo, entendido como a produção de mercadorias em larga escala, estimula confrontos pelo uso da natureza (RIBEIRO, 2007; ALLIER, 2007), bem como é evidente que o uso intenso de recursos leva à escassez. É esperado que o controle da extração desses recursos seja muito disputado, com alguns conflitos ambientais ocorrendo em diversas escalas.

Entre os diversos povos tradicionais ressalte-se que as populações indígenas têm sido impactadas por esse modelo neoextrativista. São povos que no passado foram confinados às regiões mais afastadas e inóspitas do subcontinente, como as selvas, montanhas, as zonas áridas, aquelas que estavam fora dos interesses na expansão capitalista. Depois de séculos de convivência nessas áreas confinadas e fora da cobiça dos negócios capitalistas, recentemente vêm sofrendo ameaças de expulsão, por ocuparem terras com potencial de uso capitalista, tais como a mineração e agricultura, levando-os a lutarem para defender seus territórios (STAVENHAGEN, 2008), vistos como fundos territoriais, conforme definido por Antonio Carlos Robert Moraes.

A título de ilustração, na América Latina os maiores números de casos socioambientais conflituosos documentados em 2014 estão nos seguintes países: na Colômbia, com 72 casos; Brasil, com 58 casos; Equador, com 48 conflitos ambientais; Argentina, com 32 casos; Peru, com 31; e o Chile, com 30 casos (BBC, 2014).

Três atores podem ser considerados centrais na discussão sobre conflitos socioambientais:

  1. as corporações empresariais, com destaque para duas cadeias globais, a agroindustrial de alimentos e de mineração, sendo especialmente a primeira delas bastante complexa, envolvendo diversos elos entre a produção da matéria-prima até o consumidor final e que tem estimulado monocultivos, muitas vezes com a finalidade de alimentar gado ou produzir agrocombustíveis, gerando também concentração financeira e de terras. Zhouri e Laschefski (2014) complementam, afirmando que

as empresas, ao ampliarem suas atuações para além dos limites dos territórios nacionais, ganharam e ganham em força através do processo de globalização econômica. Elas se tornaram agentes independentes que criam suas próprias espacialidades e territorialidades, seja na busca de novos mercados de consumo ou de localizações para as suas unidades produtivas, além de áreas de exploração de matéria-prima. [...] A condição básica para esta dinâmica territorial empresarial é a transformação do espaço em unidades de propriedades privadas que possam ser comercializadas como mercadorias, avaliadas pelo seu valor de troca e cada vez menos pelo seu valor do uso.

  1. os pequenos agricultores e povos tradicionais, que são extremamente relevantes porque são eles que produzem alimentos para o consumo interno das diversas sociedades, além de, especialmente os povos indígenas terem um papel protetor em reservas ambientais e nas florestas, sendo eles que têm sofrido toda a sorte de pressões para saírem de suas terras, para que monocultivos possam ser semeados ou a terra seja usada para a mineração. Porém, como assinalam Zhouri e Laschefski (2014), são sujeitos que

não se constituem como vítimas passivas do processo, pois vêm se organizando em variados movimentos, associações e redes. Mostram, por conseguinte, que possuem diversas formas de manifestar seu desacordo, seu embaraço, sua revolta e sua reivindicação (MARTINS, 1997, p. 14), ao mesmo tempo em que se colocam como portadores de outros projetos de vida e de interação com o meio ambiente. Organizadas em movimentos ou dispersas na forma de denúncias, há vozes que explicitam a perpetuação de um cenário de desigualdades e de conflito, e evidenciam o caráter arbitrário dos sentidos hegemônicos que são atribuídos ao território.

  1. o Estado, que deveria mediar os conflitos e propor políticas públicas para melhorar o bem-estar da população e a preservação ambiental, mas que, nos diversos países do subcontinente, vem apoiando o agronegócio, a mineração e o modelo de desenvolvimento que ele implica. Como lembram os autores,

a presença do Estado, nos diferentes casos, mostra-se carregada de dubiedade: de um lado, surge como implementador das políticas conservacionistas autocráticas que acirram conflitos ambientais; de outro, surge como mediador que, por vezes, posta-se ao lado das populações atingidas. Essa dubiedade pode ser interpretada como expressão da incidência dos conflitos ambientais sobre o campo institucional das chamadas "políticas ambientais", fato que evidencia a presença de brechas de contestação no interior da dominação exercida pelo paradigma do desenvolvimento (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2014).

É preciso reconhecer que alguns países do subcontinente implementaram políticas para a agricultura familiar em momentos diversos, mas isso não significou a proteção de direitos, tais como o acesso à terra e a justa condição de produção.

Também é importante observar que diversas companhias que cometem crimes ambientais ficam impunes e há constante perseguição e assassinatos dos defensores do meio ambiente em diversos países latino-americanos.

Outro aspecto com consequências sobre a situação dramática do meio ambiente na América Latina é a crescente penetração de membros do agronegócio e de representantes de mineradoras nos aparelhos estatais, com forte presença nas bancadas legislativas de muitos países e também em cargos executivos, com alguns de seus membros chegando ao cargo de presidente da república em alguns países, em estratégia para influenciar e garantir diretamente seus interesses e pressionar para "flexibilização" de normas ambientais e direitos humanos.

Também sob o ponto de vista econômico, faz-se mister assinalar que o modelo neoextrativista não tem conseguido recentemente gerar resultados animadores, pois se o mercado global experimentou um período de boom (2003-2011), a partir de 2012 tem vivenciado um pós-boom das commodities, em processo "de expansão e retração, próprios da economia dos recursos naturais, [que] tendem a se tornar mais frequentes e extremos, em contextos de forte especulação financeira sobre as commodities, no mercado de capitais". (CARVALHO, MILANEZ; GUERRA, 2018).

Tal situação do âmbito econômico, no que tange à adoção do neoextrativismo, leva os autores a defenderem que o padrão de acumulação capitalista dominante no continente latino-americano é, de fato, um modelo rentista-neoextrativista, centrado na financeirização dependente e no extrativismo intensivo de riquezas, com balança comercial sendo composta por alguns poucos produtos, modelo que "consubstancia a composição orgânica do capital financeiro com o capital vinculado à produção de commodities agrícolas, minerais e de outros recursos naturais. Trata-se da intrincada relação entre o rentismo e o neoextrativismo", que reforça uma "dependência redobrada" do Brasil e demais países latino-americanos ao capitalismo financeirizado (CARVALHO, MILANEZ; GUERRA, 2018).

Por fim, desflorestamentos e deslocamentos de povos tradicionais são constantes nas fronteiras agrícolas que já atingem os últimos biomas e reservas naturais da região, com os monocultivos imperando no uso e ocupação de terras, concentrando propriedades e predando a natureza.

Figura 1 – Conflitos socioambientais na América Latina (2014)
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Fonte: Atlas de Justicia Ambiental (2014).

7 Em busca de alternativas para o uso de recursos naturais na América Latina: aspirando à justiça social e a uma ordem internacional ambiental efetiva

Algumas possibilidades de avanços para um futuro mais positivo podem ser aventadas. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), para alcançar os novos objetivos globais da Agenda 2030, com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas, é essencial que a comunidade internacional compartilhe o dever de cuidar do meio ambiente, incitando todos os países a terem um comportamento mais consequente com questões socioambientais e criando metas para um futuro desejável e acordado entre os países (ONU, [2020?])11.

Em busca de maior justiça social e de uma gestão mais sustentável dos recursos naturais, é preciso reconhecer em parcelas dos povos tradicionais uma atitude ambiental importante: povos indígenas, quilombolas, camponeses têm mantido por séculos uma ação ambiental mais adequada ao tempo da natureza, permitindo a sua conservação. São povos que insistentemente apelam por seus direitos territoriais ancestrais como forma de embate contra a possibilidade de perda de seu modo de vida e de suas terras para a mineração, o agronegócio e o extrativismo (RIBEIRO, 2010). Reconhecer o seu papel como protetores históricos da natureza, sem dúvida, é uma medida positiva.

Também reconhecer a organização de sua luta é muito relevante. Como já dito anteriormente, nas últimas décadas em vários países da América Latina vêm ocorrendo uma aceleração da destruição da agricultura camponesa e a concomitante ampliação de monoculturas ligadas ao agronegócio de exportação. Além da concentração de terras que este modelo agroindustrial impõe, também há a destruição de florestas nativas, com as consequentes destruições da biodiversidade, mananciais, rios e desmantelamento de comunidades tradicionais, em um processo vinculado ao avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais (SIMONETTI, 2012).

Nesse contexto, muitos camponeses fragilizados e pressionados pelo capital agroindustrial vêm se mobilizando e, por meio de ação coletiva, buscam lutar de forma organizada por seus direitos. Fruto dessa mobilização foi a criação da Via Campesina em 1992, uma rede transnacional de movimentos sociais que recebe influências mútuas entre as esferas local e global. Segundo Mirian Claudia Lourenção Simonetti (2012),

cabe destacar que a transnacionalização de movimentos sociais abarca as relações sociais originadas das tensões existentes entre o local e o global, formadas entre agentes coletivos além dos limites territoriais dos países, que em graus variáveis de institucionalização, congregam membros dos mais variados países, possibilitando uma atuação mais efetiva em busca de seus interesses. Em decorrência dos novos desafios surgidos no cotidiano camponês, houve uma maior convergência dos movimentos sociais rurais em direção da nacionalização, regionalização e da transnacionalização. Assim, buscavam novos ambientes de negociação e de ação coletiva para que o alcance de seus objetivos fosse facilitado, levando-se, assim, a um maior estreitamento entre o ativismo dos movimentos sociais transnacionais, tanto do Norte como do Sul, pilar esse de sustentação da Via Campesina.

De fato, apenas nas últimas décadas emergiu uma efetiva preocupação de governos de diversos países do mundo com a temática ambiental, o que possibilitou a institucionalização da ordem ambiental internacional, que objetiva regular questões ambientais em caráter mundial e que deve ser valorizada.

Nessa ordem ambiental internacional existem muitas críticas às convenções e cúpulas sobre meio ambiente, como aquelas organizadas pela ONU, com algumas vozes argumentando que elas não levam a resultados concretos; não são capazes de definir políticas públicas que resolvam a assimetria entre países no uso dos recursos naturais, que elas produzem apenas consensos superficiais, não atingindo o cerne dos temas discutidos.

Contudo é possível contra-argumentar, como fez Wagner Costa Ribeiro (2010) quando defendeu que os documentos das convenções ambientais expressam algumas vitórias importantes de países pobres que conseguem salvaguardar parte de seus interesses, o que certamente não ocorreria se as decisões fossem definidas por meio de ações militares, caso dos países latino-americanos. Ele assevera que "a ordem ambiental internacional renova oportunidades de cooperação e impõe à reflexão os interesses reais de cada participante no cenário internacional envolvendo o ambiente" (RIBEIRO, 2010). Complementando, Everton Vieira Vargas (2004, grifo nosso) tenta demarcar responsabilidades e o âmbito de discussão e atuação no regime ambiental internacional, lembrando que

a ideia de que regras internacionais são o meio adequado para lidar com "problemas globais" requer uma concertação prévia sobre o que caracteriza a natureza global de certas questões. Se, de um lado, temas como a mudança do clima e a destruição da camada de ozônio transcendem as fronteiras nacionais e, portanto, requerem ações definidas em âmbito multilateral, de outro, questões como o manejo sustentável das florestas ou a conservação e o uso sustentável da biodiversidade parecem primariamente da alçada interna dos Estados.

Ademais, a ordem ambiental internacional permite melhorar o soft power dos países, uma vantagem adquirida por alguns países, como o Brasil, e que, lamentavelmente neste caso, vem sendo perdida por opções de política externa no governo Bolsonaro (2019-).

Em suma, as respostas aos desafios ambientais incluem uma atuação mais incisiva das organizações internacionais, sendo o multilateralismo um canal privilegiado para a discussão das questões que transcendem às fronteiras (VARGAS, 2004), mas que está sob ataque nos últimos anos em uma reação de governos nacionalistas e do governo norte-americano na gestão de Donald Trump (2017-).

De fato, efetivamente há uma assimetria do poder internacional na disputa entre as nações pelos estoques das riquezas naturais, uma vez que a distribuição geográfica de tecnologia e de recursos é desigual e a apropriação e o uso das riquezas naturais passam a ser almejados por diferentes atores.

Considerando que no mundo moderno os territórios estão vinculados ao domínio estatal do espaço, que é o âmbito espacial de exercício do poder de um Estado, o tema Soberania adquire relevância. Antonio Carlos Robert Moraes (2000) advoga que o conceito de soberania pressupõe a existência de uma base espacial e de fronteiras (a delimitação de sua área de exercício ou limite de abrangência espacial). Derivada desse assunto, no que se refere aos recursos naturais, há a defesa da ideia de soberania permanente sobre os recursos naturais. Essa perspectiva defende que o Estado nacional é o proprietário dos recursos naturais existentes na sua jurisdição territorial e, por isso, tem plena legitimidade para definir as regras para a exploração das reservas e canalizar para os cofres públicos a máxima receita possível (FUSER, 2008).

Nesse plano de ideias, tem ganhado relevância a discussão sobre bens públicos globais. Rafael Jacques Rodrigues (2008) explica que os bens públicos globais são

correspondentes a riquezas naturais que deveriam ser compartilhadas entre todos os seres humanos, independentemente das fronteiras políticas e jurisdicionais existentes. Se [este conceito] por um lado considera a amplitude da escala dos problemas ambientais, a ideia de proteção compartilhada de riquezas naturais globais desperta, por outro, várias divergências políticas entre os países na medida em que esbarra no conceito tradicional de soberania internacional e na autonomia de organização do uso do território.

Assim, os dilemas de uma possível governança global emergem nas discussões sobre as possibilidades de construção de uma ordem internacional mais justa. Isso porque os danos ambientais transbordam da esfera local e nacional, de forma que eles rompem estruturas territorialmente delimitadas, tornando pertinente discutir sobre responsabilidades globais. Alberto Teixeira da Silva (2006) resume o delineamento desse mecanismo como uma possibilidade para a construção de uma ordem mundial mais justa e solidária. Ele aponta que

a questão ambiental é emblemática para uma discussão dos atores, estratégias e rumos do sistema internacional – que hoje constitui efetivamente um sistema global, e a noção de governança tem o mérito de reconhecer a complexidade do sistema Governança global [que] não é governo mundial, mas um processo dinâmico e policêntrico, aglutinando perspectivas e agendas multifacetadas. Manifestando a tese de que não há alternativa senão trabalhar em conjunto e usar o poder coletivo para criar um mundo melhor, o relatório da Comissão sobre Governança Global estabeleceu o conceito de governança como sendo: "a totalidade das diversas maneiras pelas quais os indivíduos e as instituições, públicas e privadas, administram seus problemas comuns. É um processo contínuo pelo qual é possível acomodar interesses conflitantes ou diferentes e realizar ações cooperativas. Governança diz respeito não só a instituições e regimes formais autorizados a impor obediência, mas também a acordos informais que atendam ao interesse das pessoas e instituições" (SILVA, 2006).

Um dos aspectos derivados dessa questão é que há incertezas sobre o presente e o futuro da biosfera e decisões precisam ser adotadas de forma preventiva, ainda que muitas vezes carecendo de informações científicas suficientes. É um contexto no qual ganhou notoriedade o chamado Princípio da Precaução que "exprime a necessidade de agir com base em incertezas, para evitar consequências maléficas derivadas dos riscos da modernidade insustentável" (SILVA, 2006). Como admite Wagner Costa Ribeiro (2004), mantido o modo de produção capitalista, "cujas temporalidades desconsideram a capacidade natural de reposição de recursos naturais, quando são renováveis, ou mesmo a degradação ambiental que geram, as dificuldades em obter recursos serão ampliadas" e por isso muitas inquietações permanecem. Esse autor enumera alguns exemplos preocupantes, reforçando a ponderação acima assinalada, quando afirma que

projeções do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente indicam que em 2025 [a água] será rara entre países de grande população, como a Índia e a China, mas também em países de elevado padrão de consumo de mercadorias, como os Estados Unidos e grande parte dos países europeus, incluindo França, Espanha e Alemanha. Ao mesmo tempo, os estudos avaliam que haverá excedente hídrico em países da América do Sul, na África Central e na Austrália, o que permite vislumbrar um intenso fluxo de água intercontinental. [...] A diversidade biológica também engendra questões importantes. O acesso à informação genética e a partilha dos benefícios que ela gera é tema ainda indefinido entre os atores envolvidos na discussão sobre a regulação do acesso à bio e sócio-diversidade. Países megadiversos como o Brasil, a Bolívia e o Peru são alvo de cobiça internacional dado que possuem matrizes genéticas passíveis de serem utilizadas em pesquisas para o desenvolvimento da engenharia genética e da biotecnologia12 (RIBEIRO, 2004).

Porém o discurso sobre bens públicos globais pode, contraditoriamente, fortalecer o argumento da necessidade de adoção de uma agenda liberal defendida por países com governos majoritariamente de direita e algumas empresas multinacionais, especialmente aquelas que são grandes consumidoras de recursos naturais. Esse discurso liberal enfatiza os direitos dos investidores sem levar em conta a questão da propriedade nos territórios onde se situam os recursos a serem explorados. Assim, sob o ponto de vista liberal, as matérias-primas minerais são consideradas como um patrimônio natural, cabendo aos Estados hospedeiros cobrar impostos sobre os lucros obtidos na sua exploração, mas sem o exercício das prerrogativas inerentes à soberania. Quem impõe as regras do jogo são os investidores e os consumidores estrangeiros (FUSER, 2008), sem considerar os diversos pontos acima assinalados neste artigo.

8 Considerações finais

A primeira década do século XXI foi exitosa para a economia da maioria dos países latino-americanos. A região vinha se beneficiando em seu conjunto com o aumento dos preços das commodities no mercado internacional. Mas este período de bonança vem se esgotando, e a conjuntura atual traz algumas preocupações.

É fato que esses recursos naturais commoditizados, inclusive terra e água usadas nas atividades de agropecuária e mineração, têm sustentado certa estabilidade econômica na região, mas, por outro lado, esse modelo reprimariza a pauta de exportações das principais economias da região, criando dependência.

Há poucos investimentos em diversificação das economias nacionais e regionais para possibilitar que os países da região se tornem mais autônomos e independentes de importações de produtos industrializados no comércio internacional.

As assimetrias que marcam o sistema internacional, que tornam a América Latina um ator subalterno no cenário internacional, requerem esforços redobrados para a sua superação. No meio ambiente são necessárias diversas medidas que ao menos mitiguem as mudanças climáticas, em particular aquelas de caráter global.

É preciso também que se levem em consideração as distintas responsabilidades históricas, especialmente das sociedades mais avançadas, pela deterioração do meio ambiente global, bem como as diferentes capacidades das nações de responderem aos desafios colocados por essas mudanças (VARGAS, 2004). Na América Latina este é um legado desde a chegada de Cristóvão Colombo no subcontinente, no final do século XV, em um extermínio e degradação ambiental reforçados por outros imperialismos subsequentes, causadores de pobreza e dependência.

Sob o atual modelo neoextrativista, certamente alguns podem advogar que há alguns aspectos positivos, já que ele possibilita geração de divisas, maior escala de produção, maior avanço tecnológico. Mas a qual custo?

Estaria, então, o neoextrativismo contribuindo para um genuíno desenvolvimento, para a autonomização dos indivíduos nas desiguais e empobrecidas sociedades latino-americanas? A frase de John Keynes "o futuro, ah, o futuro... no futuro estaremos todos mortos!" parece ser a tônica do zeitgeist na América Latina, com a sua voracidade e inconsequência, oposta à ideia de securitização recomendada na agenda de discussão de segurança e defesa na atualidade. Nesse esteio,

vale notar que o capital não necessita exercitar o domínio administrativo sobre o território. O território é território para ele quando lhe é útil demarcar suas posses. Mas é espaço indefinido quando ele o vê como mero suporte para suas atividades, fonte de extração de riqueza e local de rejeito do que não lhe dá lucro e do refugo humano [...] que não lhe serve. Espaço sem limites quando limites poderiam tolher seu avanço sobre novas terras e sobre a população local. Sob esse ângulo, o capital delega ao poder público, colocado a seu serviço, o exercício do poder e do controle sobre esse território. O capital procede, assim, à desconstrução e à reconstrução permanente do território, esvaziando-o de sentidos e de povos conforme seus interesses, tornando-o móvel e incerto para poder fazer dele um território à escala do mundo desde que mantidas as aparências de território público com suas divisões administrativas. Para a bolsa de valores de Chicago, pouco importa se a soja vem da fronteira amazônica do Mato Grosso ou dos pampas argentinos. Não existem fronteiras nem povos para ela (LEROY, 2011).

Nesse comentário Leroy (2011) alerta como a lógica capitalista se impõe sobre o território e a soberania estatal, o que traz enormes desafios para a resolução de conflitos e impactos socioambientais, mesmo em democracias.

Referências

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* Professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia e do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisadora CNPq. E-mail: claudete@unicamp.br.

1 Na XV Semana de Geografia "Conjuntura socioambiental no Brasil atual", ocorrida em 19 de setembro de 2019.

2 Eduardo Gudynas (2012), um reconhecido estudioso do modelo chamado de extrativista, argumenta que "o rótulo de extrativismo [...] é pertinente porque se trata da extração de enormes recursos naturais direcionados à exportação, como matéria-prima, sem grandes processamentos, e subordinados aos mercados globais, por meio de corporações multinacionais. Isto pode ser observado em especial no cultivo da soja, baseado em variedades transgênicas, no amplo uso de mecanização, herbicidas químicos, no escasso ou inexistente beneficiamento e na exportação como commodity. O mesmo ocorre com as monoculturas florestais, que cobrem amplas superfícies e se destinam à fabricação da pasta de celulose" (GUDYNAS, 2012, p. 306).

3 Na discussão do uso dos recursos hídricos também deve ser assinalada a relevância de um agente econômico, as empresas envolvidas com o comércio de água, e que pressionam pela privatização desse recurso natural. Segundo Roberto Malvezzi (2005), "a privatização da água não se dá ao acaso, ou de forma dispersa. Ela passa pela elaboração de grandes estratégias, mapeando a abundância da água nas regiões do planeta e construindo planos que, em longo prazo, permitam a apropriação privada desse bem em escala mundial. [...] [Há] planos que existem desde o Canadá até o sul do continente latino-americano, para termos uma ideia mínima do que está sendo estrategicamente pensado. Por trás desses planos estão sempre grandes empresas transnacionais, a intermediação dos organismos multilaterais, como BIRD, Banco Mundial e FMI, sempre em articulação com os governos e elites locais dispostas a transferir o patrimônio público para empresas privadas" (MALVEZZI, 2005).

4 Conforme alerta Felipe Aguiar Marcondes de Faria (2013), em reportagem de João Fallet, da BBC, a construção de hidrelétricas, além de valorizar terras e atrair imigrantes, pode estimular o desmatamento ao melhorar as condições de acesso à região, expondo florestas antes inacessíveis, bem como a elevação do efeito estufa, pois "se a construção de uma hidrelétrica implicar taxas de desmatamento superiores às de locais onde não existem tais investimentos, nós poderemos acrescentar esse desmatamento extra ao balanço de carbono do projeto". O pesquisador também questiona os cálculos que exaltam o baixo preço das hidrelétricas em comparação com outras fontes de energia, pois não consideram adequadamente os custos socioambientais desses empreendimentos (FALLET, 2013).

5 "Na primeira década do século XXI, em meio ao acirramento das contradições do modelo neoliberal de ajuste ao capitalismo financeirizado, a América Latina deflagra processos de mudança em sua fisionomia política, delineando um novo ordenamento geopolítico. A rigor, o continente latino-americano vivencia um período de ascensão de governos ditos progressistas, de diferentes matizes" (CARVALHO; MILANEZ; GUERRA, 2018).

6 Importante constatação foi assinalada por Alba Maria Pinho de Carvalho, Bruno Milanez e Eliana Costa Guerra (2018) quando afirmaram que, "via de regra, os governos alinhados com o modelo neoextrativista desconsideram demandas não mercadológicas, a exemplo daquelas baseadas em valores ambientais, culturais ou religiosos. Ao contrário, quando são feitas reivindicações vinculadas a necessidades dessa natureza, os debates incorrem em uma visão gerencial e financista, limitando-se ao valor das compensações econômicas e à definição de grupos passíveis de receber compensações (GUDYNAS, 2012a)" (CARVALHO; MILANEZ; GUERRA, 2018).

7 A acumulação por espoliação discutida por David Harvey é, segundo Igor Fuser (2008), uma releitura da elaboração marxista sobre a acumulação primitiva do capital, um processo "baseado no saque, na fraude e na violência", ainda presentes na chamada era neoliberal e que se dá, por exemplo, por meio da apropriação de terras comunais pelas elites e grupos privados, além de outras formas de privatização ou apropriação privada, tendo como contraposição o chamado "nacionalismo de recursos", uma forma de "resistência popular ao controle de bens naturais estratégicos por empresas estrangeiras, tal como se manifesta na Bolívia, Venezuela, Equador e outros países" (FUSER, 2008).

8 Em uma nota, baseada em Soares (2009), Silva (2017) assevera que "sob a ótica do mercado, o território e as relações sociais que ali se desenvolvem são entendidos, pelos empreendedores e também pelo Estado, como mercadoria passível de uma valoração monetária".

9 "Estas empresas continuam a desempenhar uma função central no jogo de interesses que envolvem os megaprojetos contemporâneos [...]. Uma das principais questões prende-se com os donativos financeiros que estas empresas fazem aos partidos políticos. Tal prática perpetua o jogo dos interesses dominantes, no qual as empresas ‘doadoras’ têm nos contratos com o setor público a principal fonte de suas receitas. A decisão de se construir um empreendimento é regida por lógicas econômicas e políticas, e estas ignoram frequentemente as necessidades dos cidadãos. Um exemplo paradigmático desta relação entre empreiteiras e partidos políticos ocorreu na construção [da usina hidrelétrica] de Belo Monte. As principais construtoras responsáveis pelas obras da usina estão sendo acusadas de pagamento de propina e de vultuosas doações para as campanhas eleitorais" (SILVA, 2017).

10 John Wilkinson, Bastian Reydon e Alberto Di Sabbato (2012) explicam que "en la última década ha habido una transformación fundamental de la industria mundial de la celulosa y el papel, con el traslado de la producción primaria hacia los países del Sur y sobre todo América del Sur. Brasil tiene más de 6 millones de ha de ‘bosques plantados’, una terminología rechazadas por ambientalistas porque es esencialmente un monocultivo de eucalipto. Grandes empresas del Norte – Stora Enso – dejan los bosques de pinos e invierten en eucaliptos, cuyo crecimiento en el Sur es tres veces más rápido" (WILKINSON; REYDON; DI SABBATO, 2012).

11 Para maiores detalhes, ver em NAÇÕES UNIDAS BRASIL (2020).

12 Contudo o autor (RIBEIRO, 2004) complementa apontando uma potencialidade que também pode ser motivo de disputa e roubo: "Mas esses países [os mega diversos] também contam com inúmeras comunidades locais (povos indígenas, ribeirinhos, camponeses, caboclos, quilombolas, caiçaras), que possuem conhecimento específico de determinadas espécies que ajudam no desenvolvimento de produtos", motivo de tensão entre conhecimento tradicional e propriedade intelectual. Para maiores esclarecimentos sobre essa relação, ver Zanirato e Ribeiro (2007).

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ISSN 2317-3254