Apresentação

Francisco Jozivan Guedes de Lima, Raimundo Batista dos Santos Junior

Resumo


A conjuntura política atual tem estabelecido questões fundamentais para as democracias ocidentais, em especial, impactos impostos por práticas autoritárias. Mas, no alvorecer dos anos 2000, tudo indicava que a democracia tinha definitivamente se firmado no Ocidente com o fim do Regime Soviético, jubilando-se o fim da história. O problema é que a democracia é um regime político e um processo em constante movimento e evolução que interagem com práticas antagônicas continuamente. Comportamentos populistas e autoritários que negam a universalidade dos direitos humanos e contestam o reconhecimento de minorias demonstram que a virtude democrática da tolerância social não é um valor absoluto, mesmo no mundo ocidental, podendo passar por revés de diferentes naturezas.

A tese de Francis Fukuyama (1992) de que a democracia liberal e a economia de mercado tinham vencido o jogo político refletia a percepção plasmada de que, doravante, a democracia liberal tornara-se a ideia-força da sociedade de mercado, mesmo na periferia do Ocidente. Por outro lado, Samuel Huntington (1994) chamava atenção para o surgimento de uma Terceira onda de democratização, que teve início em 1974 com a Revolução dos Cravos, em Portugal, espalhando-se por vários países que anteriormente adotavam regimes autoritários de governo, principalmente na América Latina e na África.

Assim, o fim do Regime Soviético, a democratização de países autoritários na América Latina e África e os trabalhos de Fukuyama e Huntington consolidavam a ideia-força de que a democracia teria adquirido musculatura para sepultar definitivamente as forças disruptivas do regime democrático, pois estas não encontravam mais garfos na cultura política do Ocidente. O problema é que o próprio Huntington já chamava a atenção para o fato de que eram possíveis movimentos reversos em que países se movem de um regime democrático para uma ditadura, e é justamente isso que ele chama de “onda”.

Para a Física, ondas são perturbações, com vibrações contínuas ou transitórias, que se estendem por diferentes meios, e, por extensão de sentido, no caso das relações sociais, através de instituições, comportamentos e práticas que instituem crenças e valores fundamentais para os movimentos políticos. A ideia de ondas reversas pode ser perfeitamente aplicada à atual conjuntura política, em que a virtude democrática da tolerância e da mediação de conflitos têm sido colocadas em xeque por ondas que defendem a autocracia, o populismo, práticas e arroubos autoritários de grupos, movimentos sociais, partidos políticos e indivíduos.

Mas qual a relação entre democracia e tolerância? Tolerância vem de “tolerare” (latim), que significa “aceitar” ou “suportar”, e democracia, do grego “demos”, que quer dizer povo ou muito, e “kracia”, governo ou autoridade. Nesses termos, o regime democrático possibilita que seus cidadãos possam participar ativamente da vida pública em suas diferentes manifestações, votar e ser votado, organizar-se politicamente, fazer oposição, defender posições contrárias à maioria, contestar, dentro dos limites institucionais, o status quo etc. Ora, nada disso seria possível se o princípio da tolerância não fosse parte integrante da ideia-força que move a democracia.

O pluralismo político próprio da democracia suporta práticas intolerantes dentro dos limites institucionais. Nesses termos, sempre conviveu com movimentos e atores intolerantes e até extremistas. Se essa assertiva for crível, por que a preocupação com as forças extremas da sociedade hodierna? O que teria mudado nos últimos tempos que vem causando perplexidade e inquietação? É justamente o que essa nova edição da Revista Conexão Política vai discutir.

Os artigos aprovados para o V. 9, N. 2 (2020) da Revista Conexão Política fazem parte do dossiê “Democracia e in(tolerância) política”.Os papers e resenhas que fazem parte desse número tratam de um conjunto de temas que analisam, a partir de diferentes aportes teóricos, metodológicos e problemas de pesquisa, a relação entre democracia, tolerância e intolerância.

O primeiro artigo desta edição, de Pedro Cardoso Saraiva Marques, dedica-se a compreender como as instituições políticas afetam a dinâmica econômica no contexto democrático. Tomando como base estudos empíricos, o trabalho analisa a relação entre democracia e taxa de inflação. A análise utiliza-se das teorias modernas da democracia, argumenta que partidos são eleitoralmente punidos quando proveem um nível geral de preços insatisfatório, formulando a hipótese de que governos mais democráticos tendem a apresentar taxas de inflação menores.

No segundo artigo, Adan John Gomes da Silva analisa os contornos políticos e sociais do aprimoramento genético a partir das reflexões de Michael Sandel. Para Silva, Sandel opõe-se a uma prática recorrente na contemporaneidade: o aprimoramento biomédico. Nesses termos, quando se contextualiza a crítica de Sandel a essa prática na filosofia política, acredita-se que o risco está assentado justamente na capacidade que esse tipo de tecnologia tem de corroer as bases de uma democracia forte e saudável.

O texto de Jennifer Azambuja de Morais e Felipe Silva Milanezi discute as manifestações de conflitos entre os valores democráticos e autoritários exacerbados pela crise na saúde e na economia realçados pelas tensões provocadas pela Pandemia do Novo Coronavírus (SARS-CoV-2), particularmente no Brasil. Morais e Milanezi partem da tese de que a pandemia não aumentou o autoritarismo brasileiro, mas realçou atitudes e comportamentos que já estavam na sociedade brasileira. O artigo analisa os impactos socioeconômicos e culturais, em especial a ideologia no apoio a um governo autoritário, conduzido pelos jovens porto-alegrenses.

Antônio Danilo Feitosa Bastos e Elnora Maria Gondim Machado Lima dissertam sobre a relação entre religião e política no Estado democrático, para daí buscarem entender o caso da democracia brasileira. O Brasil é analisado como um Estado democrático governado por um presidente militar da reserva, eleito com o bordão de campanha “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Segundo Bastos e Lima, esse slogan ajuda a entender os grandes acontecimentos da História do Brasil e a perceber que o vínculo entre Religião e Estado nunca se rompeu no plano dos arquétipos da política nacional. Os autores ancoram suas análises a partir do conceito de justiça de John Rawls, em que, apesar de os indivíduos terem concepções divergentes de bem, apresentam discernimentos para a prática do consenso, capazes de reduzir o conflito entre valores políticos e seus próprios valores éticos.

O paper de Juliano Cordeiro da Costa Oliveira aborda a ideia da tolerância em Jürgen Habermas, Rainer Forst e Charles Taylor. Para Jacques Derrida, a tolerância seria uma categoria de exclusão do outro. Habermas e Forst preferem uma reconstrução da ideia de tolerância do que sua desconstrução, como faz Derrida. Habermas e Forst veem a tolerância como respeito, pois o ser, ou não tolerado, relaciona-se com a prática discursiva de todos os sujeitos nas deliberações. Já para Taylor, a tolerância vai além do respeito, significando uma estima ética como valor essencial para o reconhecimento e a formação da identidade e do self. A hipótese investigada é que a tolerância, como respeito, conceituada por Forst e adotada por Habermas, seria a mais adequada para o contexto contemporâneo do pluralismo razoável.

O artigo de Adriano Aparecido Silva, Leandro dos Santos, Juliana Giraldini Barbosa da Silva, Dionei José Silva e Fernando Henrique Eduardo Guarnieri discute a questão ambiental a partir da teoria da governança econômica dos bens públicos. Segundo os autores, existe o entendimento de que o bem comum deve ser gerido por meio da governança corporativa e que as negociações e decisões públicas devem ancorar-se por meio da participação de diversos atores sociais. É a partir dessas assertivas que se defende a ideia de que se deve confiar a gestão do meio ambiente à comunidade, através da população ou de grupos interessados na questão, ao invés de deixá-la sob a responsabilidade de órgãos governamentais.

Luciane Menezes de Moraes, Lucélia Ivonete Juliani e Tanise Brandão Bussmann focam sua análise na Consulta Popular por intermédio do Orçamento Participativo no estado do Rio Grande do Sul, salientando o instituto da participação popular na construção parcial do orçamento do estado. Nesses termos, privilegiam o estudo do processo de consolidação do orçamento participativo e a descentralização das ações que ocorreram no Rio Grande do Sul, mesmo com as mudanças de governos e de partidos que se sucederam ao longo dos anos.

André Bakker da Silveira discuteaproteção de direitos humanos no cosmopolitismo de Jürgen Habermas, a partir do artigoAlternative visions of a new global order: what should cosmopolitans hope for?”, de Cristina Lafont, publicado em 2008.Segundo essa autora, o cosmopolitismo de Habermas dava margem a uma dupla interpretação sobre a proteção dos direitos humanos em nível global: uma ambiciosa e outra minimalista. Essas concepções impactariam de forma diferente a soberania dos países, sendo a forma minimalista a mais branda. Lafont entende que a concepção minimalista de direitos humanos não é uma proposta viável, pois os direitos humanos básicos são sistematicamente violados pelas desigualdades sociais advindas da globalização, que já rompeu as barreiras da soberania. O artigo de Silveira discute esse argumento e analisa se, posteriormente, Habermas muda de postura, adotando uma concepção mais ambiciosa para a defesa de direitos humanos, porquanto passa a entender que a soberania dos Estados se encontra fragmentada pela economia neoliberal.

As resenhas de Andréia Fressatti Cardoso e Paulo Victor Zaneratto Bittencourt encerram esse número da Revista Conexão Política. Cardoso sumariza o livro “The Radical Philosophy of Rights”, de Costas Douzinas (2019), e Bittencourt resenha a obra “The great delusion: liberal dreams and international realities”, escrito por John J. Mearsheimer (2018).

Boa leitura!

 

Teresina, dezembro de 2020.

Francisco Jozivan Guedes de Lima

Organizador do dossiê: Democracia e in(tolerância) política

Raimundo Batista dos Santos Junior

Editor da Revista Conexão Política

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPI

 

 


Palavras-chave


Democracia

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DOI: https://doi.org/10.26694/rcp.issn.2317-3254.v9e2.2020.p7-10

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ISSN 2317-3254